Quando Niimúe criou o mundo, o fez a partir de seu próprio
corpo. O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos
distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos
em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida
na pressa com que as pessoas vão se acostumando a
viver. Em seus cabelos se emaranham de igual modo os fios de
fogo, de água, de vento e de ar. Em seu rosto se incrustam jaguares
e macacos, ratos e antílopes, formigas e quatis, beija-flores
e serpentes, todo sortimento de animais que conhecemos,
além daqueles que desconhecemos, os animais sem nome, ainda
não descobertos, não catalogados, sem taxonomia, os animais desaparecidos.
Uma gigantesca jiboia circunda a cintura do mundo e se fecha,
engolindo a si própria. Inhames, batatas e macaxeiras calçam
seus pés, trepadeiras, troncos, cipós, orquídeas e flores de
diversas cores e formatos conformam-se em peitoral, braços,
pernas, sexo. Em suas unhas escarpadas de rochas e cristais irrompem
folhagens ora miúdas, ora de formidável tamanho,
abrindo fendas em seus corações minerais. O sexo do mundo
é instável, ora macho, ora fêmea, ora macho e fêmea, ora algo
que não podemos definir com palavras, esse meio insustentável
para a mensagem. A aparência do mundo é também instável.
Muitas vezes seu rosto se afigura como que feito de legumes e
frutas, árvores milenares irrompem de protuberâncias na testa,
como chifres. Muitas vezes assume o aspecto de uma grande e
dessemelhante ave. Seus olhos, no entanto, são sempre faíscas
multicoloridas.
Niimúe ofereceu sua criação aos primeiros donos, os animais
primordiais. É com eles que as pessoas precisam negociar
para comer, para beber, para construir casas, edifícios, iglus,
taperas, malocas, favelas. É a eles que se deve prestar contas
do minério extraído até que a terra vire ferida em crosta, das
caldeiras explodidas, dos carburadores entupidos, dos rios envenenados
e das minúsculas partículas de plástico que incham
no ventre dos oceanos. É a eles que deveremos prestar contas.
E eles cobrarão.
Foram muitos de muitos dias por mar e terra. E o
tempo em que eles estiveram no mar foi de medo, fome,
doença. O mar, eles não sabiam, se afigurava como um
grande ajuntamento de todos os rios, que os assustava com
sua boca enorme, seu rugir mesmo na calmaria, sua respiração
de bicho surdo e feroz por baixo de seus pés. Estremeciam.
Tanta água não, nunca haviam conhecido, um
espírito assustador em sua baba salgada, esturrando, mas
onça é que não. Por vezes o próprio céu invertido em água.
Sob seus pés, água que corria, despropositada jiboia; acima
da cabeça deles, água exata em ferir, talvez borduna ou flecha
em vertiginoso voo. Às vezes, sobre seus corpos, a água
em cristais polidos, muito frio, coisas que cortam e matam.
Nenhum deles nunca vira um rio que falasse tantas
águas, rio sem margens. Em nenhum dos rios que conheciam,
tanta fúria, tanto mistério. Nem o Paranáhuazú, a
mãe de todos os rios, a quem os brancos chamam de Amazonas,
aquele que guarda o mundo que existe para a vida
que se vive depois de morrer, nem ele se apresentava tão
perigoso, tão ameaçador. Outrossim, cruzar aquela água infinita
e perturbada, imenso rio sem margens, certamente
era morrer sem chegar ao lugar dos antepassados. E embora
o medo corresse por seus ossos e os fizesse tremer, havia
ainda que a grande fera era mesmo a embarcação e aquilo
que a colocava em movimento, a carne bruta e ameaçadora
dos marinheiros, a força invisível, liame que lhe dera ânimo
de existir e que permitia, no intestino do porão, a ânsia,
o vômito, a merda já esverdeada e líquida que o lavava e
rescendia a podre e, ainda, os insetos e ratos, pragas que
alimentavam todo sortimento de moléstias.
O navio, pois bem, grande canoa da morte. Pessoas,
plantas, bichos, macacos, kdiziba, tatus, gooi, tamanduás,
heehi e, ainda, os Desencantados. Como chamá-los? Iñe-e
pudera observar ainda em terra os cientistas em seu trabalho
de desencantamento. E logo percebera que não se tratava
apenas de matar o bicho. Era outra atividade. Primeiro,
levavam sua alma para a pele do papel em tão perfeita
conformidade que seria possível dizer que o bicho rastejaria,
caso fosse cobra, ou voaria, caso fosse pássaro, para fora
daquele frágil limite. Depois, o desencantamento prosseguia.
E morrer era só uma parte muito pequena daquilo
tudo. O bicho, o bicho mesmo, em força e sangue, era tornado
em nada depois que tudo se dava por encerrado. Morto
e destripado, o bicho era limpo, sendo raspada da pele a
carne já desprovida de poder, e o corpo esvaziado de tudo o
que tinha sido um dia, restando um saco mole e triste, que
só depois seria reconstruído com palha ou qualquer tipo de
enchimento que servisse, recebendo, pouco a pouco, a antiga
forma, e sendo assoprada nele aquela outra cara, aquele
outro corpo, aquela boca que, aberta, não mais comeria;
que, fechada, não mais se abriria: e era daí que surgiria o
novo bicho, o outro bicho, muitas vezes inventando um
movimento que nunca poderia terminar, endurecido em
uma posição, salto ou bote que a partir daquele momento
jamais poderia se extinguir. Aos olhos de Iñe-e o desencantamento
era uma coisa verdadeiramente assombrosa.
Que vida a deles, a dos Desencantados!
Iñe-e observava tudo aquilo com temor e, se em cada
um daqueles bichos procurava uma voz, um movimento,
procurava neles também reconhecer os olhos da mãe, do
irmão, de qualquer parente que ficara para trás, como se
isso fosse possível. Procurava neles até seus próprios olhos.
Perguntando dentro de si mesma:
Será assim que tudo vai acabar? Iñe-e paralisada, fixada
na mesma posição, eternamente, talvez com um olhar
triste, talvez com um olhar surpreso, talvez com um sorriso
ao mesmo tempo impassível e engraçado, ou quem sabe
lábios apertados um contra o outro, numa tristeza capaz de
embaraçar quem venha a me observar em qualquer tempo?
E essa larga viagem, em que me levam, é também uma
viagem de desencantamento, de destripamento?
Eram coisas que ela se perguntava como se já soubesse
quais seriam as respostas, antevendo seu retrato na parede
branca de um museu visto por centenas de pessoas que não
a conheciam, que não sabiam seu nome ou o que sentira
no dia em que seu captor se postara diante dela com material
de desenho e tintas, muito pronto para roubar a sua
alma e obrigando-a, quando já não era mais natural, a se
despir. Pessoas que, mirando seu olhar cabisbaixo, ignoravam
que muito dela ainda permanecia ali.
Na tarde em que vira uma grande onça destripada no
terreiro, o coração se tornara muito pequeno dentro do
peito, minúsculo coração de pássaro sem penas, reduzido
a presa caída do ninho. Naquele dia, entre raiva e dor, chorou
por si mesma pela primeira vez.
Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história
de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a
história de como permanece em vigilância. De como foi levada
mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por
artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste
atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma
voz que ecoava pela mata chamando pelos seus irmãos
mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca.
E muito menos é a voz que foi silenciada por baixo
das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por
vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas
e, depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela
impaciência rude das Fraülein.
Tampouco é a voz que ignorou o que diziam sobre ela
os jornais e as revistas da época, as cartas escritas em letras
flexíveis como o broto do cipó. Essa voz que você ocasionalmente
escutará em sua cabeça e que se confundirá com
a sua própria voz, ou com a voz da sua filha, ou da criança
da mulher vizinha, ou até, quem sabe, com a voz de sua
avó, seja ela quem for, não é a mesma voz com que Iñe-e
nasceu. Não é aquela que virou pedra em sua garganta
quando ela foi viver no grande castelo entre pessoas quase
transparentes de tão brancas, suas carnes moles e azedas se
movimentando por entre os panos coloridos e brilhantes
que, embora bonitos, não poderiam disfarçar o feiume dos
seus captores, seus cabelos, a maioria desbotados, carecendo
da beleza esplendente que a tinta negra do huito pode
dar. Também não foi aquela voz que ela escondeu, tesouro
muito bem guardado, para que os inimigos não tivessem
nada mais dela.
Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo
essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas
atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque
agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente.
E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma
liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve
muito custo em apreendê-la. Assim, se há uma recusa em
usar a palavra taxidermia e se escolhe usar a palavra desencantamento,
há teimosia nisso. E pode ter certeza de que
Iñe-e aprovaria esse recurso. Se, em lugar de rio, ela falar
muaai ou até Fluss, pode se tratar de uma admoestação a
respeito do que lhe fizeram. Para contar esta história, Iñe-e
adverte que não é possível ser tolerante. Ademais, usa-se
essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível
ferir melhor. É possível envenená-la, zarabatana, como fazem
os guerreiros do povo miranha com o curare preparado
com o suor e sangue de suas mulheres. É possível incendiá-
la, curare quente e amargo. E de todo modo, como já se
disse, é possível usá-la como se quiser.
Essa é a voz do morto, na língua do morto, nas letras
do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade, mas o
que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta história?
Feito planta que rompe a dureza do tijolo, suas raízes
caminhando pelo escuro, a força de suas folhas impondo
nova paisagem, esta história procura o sol.
Quando Iñe-e morreu ela estava com doze anos de idade.
Então, essa é a voz da menina morta. E se alguém perceber
nela um acento rascante, e acaso a confundir com
uma voz muito velha que se eleva de uma sepultura congelada,
garanto que é da infância que essa voz brota, nasce
e se levanta. E toda voz da infância, sabe-se, é selvagem,
animal, insubordina os sentidos.